Bethania por ela mesma





“Na minha cidade, Santo Amaro da Purificação não tem assédio. Eles até me esnobam um pouco. Mas eu não saio muito, só o necessário. Não me proíbo de sair, mas nunca pelo assédio. É que não gosto. Já andei muito de andar na noite. Fiz isso demais quando cheguei ao Rio. Agora envelheci e ficou em mim mais a menina do interior. Eu sou interiorana. Sou caseiríssima, gosto de cozinhar, de receber pessoas. Adoro. Fora isso, o Rio de Janeiro, o Brasil e o mundo mudaram. Tudo ficou muito difícil. E o Rio, pela própria topografia, tem as favelas muito dentro dos bairros considerados chiques. Com a miséria e a descompensação social no País, é uma dificuldade. Meus vizinhos são favelados. Convivemos muito bem, mas é uma realidade.”

“Acho que venho cuidando do meu trabalho com muita atenção. Meu ofício jamais me exigiu algum sacrifício. Tudo o que eu fiz, o que faço e o que ainda farei vem de volta para mim de uma forma generosa, gostosa e maravilhosa. É um prazer realmente. Paralelamente, as coisas que rodeiam o ofício de uma cantora são intragáveis. Dessas eu quero distância. Por exemplo, existem pessoas que se aproximam do artista com a pretensão de que sabem o que é melhor para ele.”

“Eu procuro fazer as coisas serenamente e sempre colocar meus limites. Se eu sentir que vai ultrapassar já vou avisando – desiste de mim, não me queira! Me interessa exercitar minha paciência (que eu preciso). Então te digo sinceramente, eu cuido do meu ofício, da minha voz, da minha profissão, como se fossem filhos mesmos. Minha filha. É o que eu tenho, é o que Deus me deu. Deus não me deu filhos, mas me deu a voz, que é feminino.”

Cheguei a dizer que minha vida não interessava a ninguém, que minha cama era minha. Foi um desabafo de revolta mesmo. Outro dia ouvi uma entrevista da Whoopi Goldberg tendo que dizer nos jornais que ela não é assexuada, nem lésbica. O que é isso? Ainda existe isso? É tão antigo, meu Deus, o mundo virou de perna para o ar! Eu não acredito. O Brasil já deu milhões de passos nesse sentido.”

“Eu era uma pessoa que andava com muita gente, saía muito e, de repente resolvi ficar quietinha no meu canto. Isso criou uma espécie de excitação nas pessoas. Até amigos meus, inclusive o próprio Caetano, deram entrevista dizendo: “Ah, a Bethania virou diva, virou Greta Garbo, um mistério, ninguém sabe nada, não sai de casa!” E não é nada disso, sinceramente. Isso vem se refletindo no meu trabalho, coroando com esse show em que fui dirigida pelo Gabriel Vilella. Somos dois caipiras, eu e ele. Nós adoramos essa caipirice, que é a coisa mais chique que o Brasil tem. Duvido que uma pessoa com o juízo no lugar não queira uma casa no interior. Me interessa muito mais do que Nova York. É o meu prazer.”

“Preciso de duas horas de camarim, quando me arrumo, exercito o show, aqueço a voz, aqueço o corpo. A última meia hora fico só, depois a banda chega, rezamos e entramos. Fico nervosa sempre. Não é um descontrole, é uma excitação.”

“Eu acredito em Deus, sou católica: batizada, crismada, fiz primeira comunhão, vou à missa, confesso, comungo tenho uma relação muito profunda com Nossa Senhora. Não tenho muita intimidade com Deus, e o modo de chegar até Ele é através de Nossa Senhora. Com Ela tenho uma relação de intimidade, com todo o respeito. Me sinto à vontade para conversar com Ela, para chorar, sorrir, cantar para Ela, reverencia-la. Através dela peço para que minhas orações cheguem a Ele. Minha relação com a Mãe Menininha era mais ou menos assim, tentava chegar aos deuses africanos por meio dela. E quando ela adormeceu fiquei muito triste, porque senti uma grande saudade.”

“Gosto de fazer entalhes em madeira, trabalhar com pedra sabão. No mês de junho, que é todo de festas, é o mês da alegria para nós. De 1º a 13 tem a festa de Santo Antonio. Então todas as noites tem reza e festa, fogos e comida, os amigos para receber, a trezena de Santo Antonio. E depois vem meu aniversário que é 18 de junho, e em seguida São João e São Pedro. Até o dia 29 tem festa. Faço na minha casa o terreiro inteiro, faço fogueira, e a cada ano crio uma maneira de homenagear Santo Antonio, São João e São Pedro.”

“Fiz muito pouco tempo de análise nos anos 60, mas foi maravilhoso. Foi tão bom que não precisei mais e até hoje me beneficio. O psicanalista conseguiu me dar elementos para eu utilizar que seguram a minha onda. Maravilhoso. Quando meu pai morreu fiz uma terapia de apoio, porque eu nem precisava. Mas as pessoas começaram a me chamar atenção porque eu estava bem, e de repente, começava a andar mancando e não sabia disso. Mas eu não tinha nada e porque eu andava mancando? Aí procurei um médico e, por pouco tempo, fiz novamente análise para me recuperar da perda do meu pai.”

“O que me tira do sério é o desrespeito. E acontece. E eu não me conformo. Não aliso. Minha natureza e minha educação são tão de respeito pelos outros que não posso admitir. Tenho muito cuidado, sou extremamente cuidadosa para não ultrapassar o limite do outro. Posso discordar, não gostar das pessoas, mas respeito. E quando acontece comigo algum ato de desrespeito eu rompo e não quero nunca mais saber. Sou radical. Estou falando isso em relação a mim. Mas, quando se trata de desrespeito ao povo brasileiro, aí então eu não admito, não suporto. Não suporto chacota. Viajo muito pelo mundo inteiro e não levo desaforo para casa. Não me venha com essa coisa de que o Brasil é um país de Terceiro Mundo, subdesenvolvido.”

Sou difícil. Tenho trabalhado muito para exercitar , principalmente minha paciência. Lógico que o tempo ajuda e depois dos 35 anos a vida melhora muito. Oh, meu Deus! É igual quando passa o inferno zodiacal. Mês de maio para mim é o cão, mas quando chega 19 de junho é um mundo, uma maravilha. Tenho um lado tão infantil, tão criança ainda. É ciúme, eu sou possessiva, gosto de atenção. Trabalho isso muito para melhorar, não sou mais o bicho do mato que era anos atrás, mas ainda restam alguns traços. Agora são pouquinhas coisas. Se entenderem esse jeitinho vai legal, sem problema, não vai bater de frente, não vai ter atrito. Eu sei que sou um pouco chata e obsessiva quando fico martelando na mesma tecla – olha, isso aqui não pode, vê se não vai fazer assim ou assado, exatamente para evitar aborrecimentos. Porque, se vier eu bato de frente.”

“No show (Doces Bárbaros) que fizemos na Mangueira foi muito comovente, muito bonito. Em Londres foi muito mais profissional, tinha contrato, cachê. E foi modificado. No encerramento, no quarto bis, resolveram fazer o “Esotérico”, que era minha música só com a Gal, a de abertura. Era um palco gigantesco e começamos a cantar, a Gal foi para o microfone, o Caetano se chegou, o Gil também, ficamos os quatro num microfone só, foi uma coisa bonita, forte. Até me contaram que Caetano falou que eu estava “desamparada”, “desprotegida” no palco quando eles vieram para perto de mim. Mas eu desamparada ou desprotegida no palco? É uma coisa muito difícil. Depois chamei todos no camarim para comemorar. É um momento que se guarda na memória. Mas também acabou aí. Cada um para o seu lado. Aliás também não vi o show da Gal. Estreamos na mesma época. Vejo muito pouco todos eles. Raramente vejo Caetano. Ele trabalha muito, eu também e ele tem lá a vida dele – os filhos, a mulher, a ex-mulher. Eu o encontro mais na Bahia, nas férias.”

“Comecei a levantar com Fauzi Arap umas coisas de Clarice Lispector. Eu a conheci em 71, durante “Rosa dos Ventos”, e ela escreveu um texto para o meu show. Ficava no meu camarim, conversávamos sobre maquiagem, sobre coisas simples assim.
Tenho vontade de ver na obra dela esse lado, que é menos a mostra. Queria escolher textos e gravar, talvez por um selo pequeno.”

“Adoro Edith Piaf, Jacques Brel. Não gosto de cantar em outras línguas, mas há umas canções que me apaixonam. O projeto de um disco de canções francesas não será um disco de carreira. Não sei quando, tenho que estudar.”

“Rosa dos Ventos certamente esse é o meu show que, naquele período, fez um bem imenso à humanidade. Isso ficou muito na cabeça das pessoas, pai passa para filho...Virou uma história grande. Como voltei fazendo “Âmbar”, que tem a luminosidade e a doçura de “Rosa dos Ventos”, as pessoas perguntam muito.
O disco original de “Rosa dos Ventos” é péssimo, foi cortado, editado pela gravadora, mal gravado, um golpe. Não ouço aquilo. Intercalaram musicas lentas e alegres, tiraram o espírito do espetáculo. Briguei, fiquei louca, chorei, não adiantou. Então tenho vontade de refazer, rever aos 51 anos e fazer como era, Ter o disco inteiro, sem cortes. Isso não vai ficar assim, não. Mas para mexer com “Rosa dos Ventos” é preciso ser muito delicado.
Só farei se conseguir uma coisa rara na MPB, que é patrocínio. Tem que comprar e pagar o espetáculo. Queria fazer em lugares públicos, de graça ou por preços populares. Senão, não interessa, não tem sentido fazer “Rosa dos Ventos” para a burguesia. Acho difícil acontecer, mas se eu me zangar, pego e monto com meu rico dinheirinho, que é ganho para isso.”

“Fauzi Arap era ator, eu era louca por ele. Ia todo dia vê-lo em “Dois Perdidos em uma Noite Suja”. Chamei ele para dirigir “Comigo me desavim”, em 1967. Era um show muito pobre, todo em preto e branco, luz e sombra. Lia um texto enorme de Clarice Lispector, de dez páginas, aos gritos.”

“Quando estreamos “Rosa dos Ventos”, alguns atores do Arena nos criticaram por termos feito um espetáculo doce, tão fora da guerrilha. Flávio Império criou um estandarte para a porta do Teatro da Praia, Caetano e eu, o Sol e a Lua. Era gigantesco, feito de chita, um manifesto político.
Lembro que no ensaio geral de “Rosa dos ventos” foram nove censores, todos sentados na primeira fila. Iam ver se liberavam para 18 anos. Quando acabou, um deles me disse assim. “Dona Maria Bethania, muito bem. Vim aqui liberar a senhora para as crianças.” Ele chorava quando terminou o ensaio.
Um dos meus figurinos de “Rosa dos Ventos” foi roubado em São Paulo, por um fã. Depois a mãe dele me escreveu uma carta explicando que ele gostava muito de mim, que tinha o vestido guardado em casa. Foi um ataque de amor.”