De jeans e camiseta, cabelo preso, aos gritos de “pega, mata e come!”, Bethania já foi musa da esquerda, tempos do show Opinião. Graças ao acaso – se acaso existe e não, destino - que trouxe a menina Berré de Santo Amaro da Purificação, Bahia, para os palcos do centro do país. Peruca canecalon, coberta de colares e pulseiras, gestos largos, recitando Fernando Pessoa e Clarice Lispector – Bethania foi musa. A voz muito grave, sussurrando versos sensuais, embalou os amores dos casais pelos motéis, rivalizando na vendas de discos com o rei Roberto Carlos. Prendeu, soltou os cabelos, calçou, tirou os sapatos, largou as gravadoras comerciais, no auge do sucesso, trajetória inversa, tornou-se independente: conquistou o direito de gravar o que gosta, num repertório coerente e fiel à musica brasileira.
Foram muitas Bethanias nesses mais de 20 anos. Ou era um só? O escritor Júlio Cortázar, fã confesso (não fosse um iniciado em magia), afirmava que Bethania e Caetano são uma única pessoa: yin/yang, homem/mulher, Oxóssi/Iansã. Foi muito in, ficou inteiramente out – até ultrapassar as divisões maniqueístas dos manipuladores da opinião pública para ocupar esse lugar muito especial só reservados ao mitos. Bethania, deusa guerreira, de espada em punho e voz rouca, inconfundível, procurando sempre versos que falem às emoções dos apaixonados. Gosta-se dela como se cai em estado de paixão: além de qualquer razão.
E bela. Bela de um jeito que não é comum ser bela, cantora como não é comum ser cantora – nesse desregramento de padrões estéticos, Bethania funde a aspereza de onde começa o Nordeste com o requinte dos blues de uma Billie Holiday. Cantora diurna das terras crestadas pelo sol, mas também noturna, dos lençóis de cetim úmidos de suor e amor, transita numa carreira de impecável coerência com sua própria criatura: dividida em mel e espada. Padroeira dos apaixonados, também divididos entre o mel e a espada cortante da vingança. Dessa extensa legião, Maria Bethania é a voz mais fiel.”
Caio Fernando Abreu
“A idéia deste disco, acredito deva Ter surgido desde a primeira vez que a ouvi cantar, chegada da Bahia, de seu teatro Vila Velha, de seus irmãos João Augusto, Othon, Caetano, Gilberto Gil, Piti e Capinan. Chegada e já tomando conta do coração da gente.
De como me impressionou sua espontaneidade, seu timbre e tal maneira certa de “dizer” cada frase musical, fica pra depois.
O que pra mim importa e muito, é estar com ela neste disco, de músicas quase todas inéditas, feitas com meus novos parceiros Capinan e Torquato, meu primeiro samba com Vinícius, e outras com Guarnieri, da peça que fizemos juntos, “Arena Conta Zumbi”. Acho mesmo que essa minha nova fase, possa estar bastante impregnada do espírito baiano, como disse uma vez o meu amigo Caetano, quando lhe mostrei meu samba “Candeias”. O que acho muito bom e melhor ainda, tendo Bethania cantando comigo. Eu acredito em Bethania porque ela saber ser Noel, Caymmi, Baden, Pixinguinha e Tom Jobim. Porque Bethania é o carnaval que passou e que talvez volte com ela um dia, é a síntese do samba, do samba de agora e do antigo. E porque cantando, tem a imprevisibilidade do gesto e do sorriso, a divisão mais oportuna.
Eu acredito em Bethania como acredito em Caymmi e João Gilberto.”
Edu Lobo
Contracapa Edu e Bethania – Elenco, 1967
“Bethania tem o porte magro e agreste, chuvoso....
....Sua visão despreconceituosa da música popular chega a ser desconcertante e – porque não dizer? –incômoda. Porque nos desacostumamos com certas verdades (a vida, essa queimação) que ela vai beber, e que nos canta com insolência. Ela, que era mais interprete do que cantora (me entenderam, eu sei), agora esta movendo-se no grande continente do som, num estado de procura que cheira à febre. E assim: atenta, mergulhada até o desmaio. Esse disco nos revela isso. Maria nos faz percorrer um mundo de canções que deixou s vestirem das roupagens às vezes as mais insólitas. Mas ela é um ser que não percorre nunca um mesmo caminho: ao voltar, sempre procura outra estrada para não ambientar-se a umas tantas sombras e pedras. Neste disco, ela despediu-se das rendas para enfeitar-se aos bentos e guias de suas vertigens místicas mais recentes. Mas em seu entendimento da vida e do amor (e as malhas e tranças dessas tramas) continua lúcida. E se alteia e verga e se deixa açoitar pelas palavras que profere em seu canto cheio de existencialidade. Guerreira, ela medita o que foi caminhado e o que está pela frente. Reconhece que se abriram fendas: os terços revelaram-se inúteis, e é preciso acender velas. Em meio de saravás, ela risca o chão com pés descalços, arma seus búzios na necessidade de decifrar a sorte que lhe caberá. “Se o caminho é este, vamos andá-lo até a exaustão” – parece dizer.
Maria alumiou, há um sol que – embora pálido – vem promover sua anunciação. E ela vem e vai por aí, vagueando estonteada com suas mãos fortes, cônscia de suas dúvidas e tombada num sofrimento enorme, e onde berra sentidamente a solidão irreparável que a consome, e o percebemos.”
Hermínio Bello de Carvalho
Contracapa do disco Maria Bethania de 1969